segunda-feira, maio 25, 2009

Impressões Modernas, resenhado por Ewald Hackler

A TARDE – Caderno Cultural 23/05/2009, sábado
EWALD HACKLER

O livro Impressões modernas – Teatro e jornalismo na Bahia, da atriz e jornalista Jussilene Santana, lançado este ano, levanta pela primeira vez e analisa sistematicamente vasto material da crítica teatral em torno do trabalho de Martim Gonçalves na Bahia entre 1956 e 1961.

Jussilene se concentra nas coberturas do Diário de Notícias e do jornal A TARDE. O primeiro sustenta, pelo menos durante um bom tempo, o movimento cultural que Gonçalves desenvolve em volta da Escola de Teatro da então Universidade da Bahia. Enquanto o segundo transmite desde o início, em suas críticas, ambiguidade e até aberto antagonismo contra os novos rumos da cultura na Bahia.

Em 1998, escrevi uma resenha de A mochila do mascate, de Gianni Ratto, cenógrafo e diretor da Itália que trabalhou, a convite de Gonçalves, como cenógrafo, diretor e docente.

O livro contém um trecho em que Ratto avalia em termos conflitantes a convivência com Gonçalves: “... homem de cultura requintadíssima, sensibilidade aguda e total descompasso em suas relações humanas (...). Autoritário, estupidamente autoritário (...). Não admitia opiniões contrárias às dele (...) mas, com todos esses defeitos, tinha tido o mérito de organizar uma escola de primeira categoria. Alguns anos depois morreu, parece, de um tumor no cérebro, e isto explica tudo e me faz sentir constrangido por ter falado mal dele e, uma vez, depois de estúpida discussão, ter ameaçado surrálo (sic). Como toda personalidade ditatorial, era bi-fronte (sic), admirável e difícil de aturar.” Em 1994, Aninha Franco compilou, no seu O teatro na Bahia através da Imprensa , um, ao que parecia naquela época, vasto material que deu idéia do sistemático movimento que a Bahia promoveu contra Gonçalves e sua Escola.

Agora, o livro de Jussilene mostra a orquestração dessa campanha e analisa as sensíveis diferenças entre os impressos.

O que na verdade surge de maneira indireta, mas por isso não menos precisa, é a anatomia das mentalidades de uma província. Jussilene faz isso com uma quantidade surpreendente de material, revela uma desconhecida extensão de matérias sobre Gonçalves (que só reflete o interesse que o trabalho dele despertara em ambos os jornais), o que faz o recorte de textos selecionados por O teatro na Bahia através da Imprensa parecer muito manipulador.

A administração de Gonçalves coincide com um momento em que o Brasil atravessa intensa onda de nacionalismo, enquanto os EUA tentam, com uma política agressiva nos segmentos cultural e educativo, evitar que o setor estudantil se renda à sedução do ideário marxista.

Talvez se Cuba fosse situada em Sergipe, poder-se-ia duvidar que o entusiasmo pela vitória de Fidel e de sua posterior ditadura fosse tão geral na inteligência brasileira.

Gonçalves cometeu o pecado capital da época: conseguiu dinheiro para financiar seus projetos. Dinheiro da então dita imperialista Fundação Rockefeller. No fundo, apenas uma maneira encontrada para justificar a rejeição à excelência de seu trabalho. Nunca mais, depois de Gonçalves, uma estrela maior tomou posse da diretoria da Escola de Teatro com essa utopia messiânica.

É verdade que ele chegou ao teatro com algum atraso: formou-se em medicina com especialização em psiquiatria, estudou pintura em Pernambuco e Rio de Janeiro, onde experimentou arte-educação na Sociedade Pestalozzi com bonecos mamulengos nordestinos; estudou artes plásticas e cenografia em Londres e conheceu o rigor e a eficiência do teatro profissional inglês; trabalhou nos Estúdios da Vera Cruz, foi cenógrafo para Ziembinski e cofundador do Teatro Tablado.

Em 1956, quando assume a direção da Escola, com 36 anos, possuía sólido currículo profissional, muito acima do padrão comum. Mas é exatamente esta aparente falta de sequência na carreira, tão típica no currículo de gente de qualidade que trabalha com teatro, que seus críticos vão usar para desqualificálo como diletante e sem rumo.

São vários os enfoques que os chefões dos pequenos poderes da província usam para chamar Gonçalves às contas (com a régua do pedagogo à mão): chamam-no de colonizador porque não assume nos trabalhos uma posição de “baianidade”; é o adepto de estrangeirismos porque dirige textos da dramaturgia universal; é elitista porque monta textos de qualidade independente da origem do autor. Todas as bravatas inqualificáveis típicas dos tribunos provincianos.

São muitos, ainda, os “profissionais” da imprensa analisados por Jussilene. Tem o caso exótico de um jornalista, um verdadeiro “homem de borracha”, um contorcionista, que escreve quase que simultaneamente em diferentes jornais, emitindo em cada um deles avaliação sobre Gonçalves seguindo estritamente as linhas editoriais do impresso que o publica. Um verdadeiro mestre de flexibilidade e ética jornalísticas.

Bom, e diante do que faz Paulo Francis, que emite do Rio de Janeiro críticas sobre as peças dirigidas por Gonçalves sem assisti-las (obviamente baseado num ghost writer na Bahia que, por sua vez, republicava os textos de Francis na imprensa), até que as resenhas negativas utilizando pseudônimos representavam práticas inocentes...

O maior mérito do livro de Jussilene é que demonstra, não apenas analisando o currículo de Gonçalves, mas também seus empreendimentos culturais nos poucos anos de Bahia, ter ele feito em favor da arte popular do Nordeste, do teatro de cordel, da dramaturgia nacional, da divulgação das danças e teatros populares do Brasil (no País e no exterior), mais do que todos seus críticos juntos eventualmente fizeram pelo Estado e pela divulgação de sua cultura.

Seus críticos exerceram em lastimável penúria ideológica a função de leão de chácara dessa boa terra. Escolheram como quartelgeneral para maquinar os ataques o barzinho da esquina. E até hoje cultivam, como idéia dominante, que a situação colonial (ou semicolonial) produziria a alienação da cultura brasileira. Até hoje também – isso o livro de Jussilene transmite – se argumenta sob a mira de polarização costumeira, colocando a dramaturgia universal como servindo a um teatro alienado.

Enquanto embusteiros ambulantes festejam a produção nacional de peças predominantemente medíocres como “engajadas”, não se dão conta que o teatro brasileiro perde técnicas e contribuições importantes de textos da dramaturgia universal que tratam justamente de aspectos vitais também da vida no Brasil.

Quanto à hoje, pode se dizer que o teatro é contaminado num nível ideológico pela concepção que o governo tem de cultura. Porque o governo faz o que não é o direito do governo: cobra para si o privilégio de dizer o que é cultura. É a banalização da didática barata: acarajé também é cultura. Feijoada é cultura.

TUDO é cultura!... Se tudo é cultura, logo, nada é cultura...! Esta concepção do vatapá cultural, a ditadura suflê da arte popular, já se anunciava na campanha contra Gonçalves há 50 anos. É a mesma triste obsessão populista que paralisa há muito tempo o raciocínio.

Desligando a cultura do conceito de seleção e de qualidade, a sátira se revela como verdade, a vulgaridade e a burrice são celebradas como qualidades máximas. E o obscurantismo como arte da política. Assistimos ao nivelamento por baixo.

Por que os intelectuais desta boa terra não se manifestaram ontem e não se manifestam hoje? Eles não têm colhões nas calças que vestem? A forma pedante com que se discute ainda o conceito de “baianidade” remete ao pesadelo de uma churrascaria em que o homem mais bem pago é aquele que vira as salsichinhas na brasa. A natureza patológicoautista da contemplação do próprio umbigo tem paralisado por décadas boa parte da imaginação e criatividade acadêmica local.

Pois também fazem parte da memória nacional a literatura de Machado de Assis e de Lima Barreto que, é bom lembrar, eram negros, e conseguiram superar o terrível estigma de cor com a validade de suas letras. Que LIÇÃO para nós! Eles não se comportaram como duas velhinhas insistindo pela poltrona “only for white” num ônibus. Eram, sim, dois escritores brasileiros, negros, que tomaram os primeiros lugares do cânone literário mundial por suas obras.

Mas o recado do atual “jornalismo cultural” parece ser: “O País não tem mais um Machado, um Lima...

Mas e daí, se temos Paulo Coelho?!” Como se pode ver, Caio Plínio Segundo, o cientista romano, tinha razão dizendo que “nenhum livro é tão ruim que não possa ser útil sob algum aspecto”.

Quando Gonçalves deixa a Bahia em 1961, como homem achincalhado na desgraça pelos jornais baianos, ele não perde tempo decifrando o enigma da sua queda. Usa os anos que lhe restam para fazer teatro. Intensamente. Parece que a Bahia nunca havia existido.

Mas a Escola de Teatro, com sua alta reputação acadêmica e artística, sobrou quase que como um paradoxo de tudo isso. Porque ainda incorpora seus princípios no ensino da prática teatral. E ficou também seu teatro, reconstruído, desde 1996, como Teatro Martim Gonçalves.

Ele está de volta, sim.

Não posso fechar o livro Impressões modernas sem reclamação.

Diante das qualidades do trabalho, quase me sinto um crítico mesquinho: mas o arranjo gráfico da capa é confuso, porque o título se confunde com a reprodução de um artigo de jornal com as falhas de clichê com retícula.

Além disso, o título é em si de pouca precisão. A abrangência da pesquisa e a habilidade da análise de Jussilene Santana em manusear a quantidade imensa de material, colocando-o além das linhas de fuga das perspectivas conservadoras, não mereceriam um termo tão nebuloso quanto “impressões”. E o que seriam impressões modernas escapa por completo à minha compreensão. No subtítulo, não faria mal especificar o período que o livro contempla. Aqui, um último recado para o leitor: não julgue pela capa. Confie no livro!

EWALD HACKLER | Diretor teatral e cenógrafo